Escrita por: Pedro Rubens
Esse texto possui spoilers sobre alguns dos eventos da série e conta com consultoria da historiadora Seli Camilo.
A propagação de mitos e lendas surge da mesma procedência: a oralidade. Ainda que ambos os gêneros tenham características distintas, terminam encontrando-se no mesmo ponto. A construção das figuras centrais, que tornam-se heróis e permanecem no imaginário social. Entretanto, por vezes, a apresentação de tais personagens pode soar como um processo de desconstrução imagética muito mais do que agregação histórico-social.
Maria e o Cangaço, nova série nacional do Disney+, acompanha os últimos momentos do bando de Lampião, no cangaço brasileiro, a partir da perspectiva de Maria Bonita. Entre idas e vindas, a história apresenta situações cotidianas que muitas vezes fogem dos livros, partindo apenas para relatos orais espalhados no meio comum.
É nesse ponto que a produção desanda e o “caldo entorna". Não é necessário ir muito distante para ler relatos sobre o cangaço e os inúmeros bandos de cangaceiros que existiram. Porém, é fato que Maria Bonita e Lampião assumiram a dianteira e os holofotes deste recorte histórico e tornam-se protagonistas da nova série do streaming nacional, vivenciados por Isis Valverde e Júlio Andrade, respectivamente.
Entretanto, Maria e o Cangaço parte para uma abordagem que adapta “Maria Bonita: Sexo, violência e mulheres no cangaço", obra de Adriana Negreiros. A partir do nome do livro já deduz-se que há inúmeras fontes confiáveis, afinal, aqueles que compõem os grupos de cangaceiros são apontados como pessoas impiedosas, raivosas, sem misericórdia, compaixão ou piedade. Roubavam para si e não para ajudar a população — porém, isso foi deixado de lado.
A construção narrativa não-linear aparenta contar um arco por episódio, no qual detalha as múltiplas faces da mesma pessoa dentro daquele contexto: estrategista, líder, mãe, esposa, cangaceira, mas, sobretudo, mulher. O problema se consolida no desarranjo de um roteiro que não consegue fundamentar-se historicamente e nem tampouco somar as 6 peças desse quebra-cabeças. Ao final de cada episódio, fica a compreensão de um lado de Maria Bonita que — às vezes —contradiz o anterior, mas frequentemente, distorce a propagação dos relatos orais que construíram sua identidade no meio do povo.
Ao criar uma persona cheia de misericórdia, emotiva, compassiva e até chorosa, Maria e o Cangaço vai na contramão do que a História do Cangaço conta. Por um lado, acerta ao mostrar que aquela foi uma escolha da própria protagonista — como de fato o foi —, dado que abriu mão do seu casamento por ser apaixonada por aquela vida nômade e anarquista. Entretanto, a série peca ao mostrar mulheres que também estavam naquele bando e eram apaixonadas pelos seus referidos esposos. A verdade é que, historicamente e com exceção de Maria Bonita, nenhuma delas optou por aquela vida, mas foi parar ali raptada pelos cangaceiros. Logo, a satisfação e o apreço apresentados na série não passam de um desvio histórico.
Para além disto, a produção dedica-se a construir o laço materno e, por vezes, familiar entre o casal de protagonistas e Expedita, sua única filha. Aqui, novamente há um excesso de informações que distorcem a realidade. A primogênita foi deixada com um casal de amigos vaqueiros para ser criada, e não com a família materna. Da mesma forma, os encontros entre os três praticamente não existiram, assim como a idealização familiar, sendo tudo isso apresentado na série de forma cativante e apaixonante.
A história dedica-se aos anos finais do bando de Virgulino Ferreira e à contribuição de Maria Bonita no bando. Desta feita, a distorção — ou falta de interpretação — acerca da Volante* são absurdos. Por mais tendencioso e político que seja, o site do Senado apresenta um relato completo acerca da emboscada que levou ao fim o grupo de cangaceiros mais famoso de todos os tempos. A descrição rica em detalhes está disponível para todos (e ao fim do texto) de tal forma que não deixa espaços para a necessidade de subterfúgios para além da realidade. Não houve junção de forças policiais com o Exército — como a série aponta.
Decerto que, talvez, os maiores acertos da produção seja a caracterização e, sobretudo, a capacidade de apresentar o semiárido nordestino com toda a sua riqueza. Assim, a cinematografia aplicada na série é, de longe, o maior e melhor recurso apresentado no curso dos 6 episódios. A força da natureza nordestina funciona como um personagem que rouba a cena e se sobrepõe aos erros e distorções históricas, dando vazão ao redimensionamento e corroboração das histórias populares acerca do cangaço — servindo como retificação para a história contada na série.
Maria e o Cangaço tem uma ideia brilhante, mas uma execução que deixa a desejar. Falha ao abraçar a licença poética na abordagem histórica da mulher mais importante do cangaço. A contemporaneidade e sua forma romantizada de contar histórias não vai ser capaz de abafar, nem muito menos sucumbir, a grandiosa potência de Maria Gomes de Oliveira, também conhecida como Maria Bonita.
A partir da próxima sexta-feira, dia 04 de abril, os 6 episódios da minissérie estarão disponíveis no Disney+.
Nota: 6,17
* Volante: Grupo policial criado com o objetivo de “caçar” os cangaceiros, tendo autorização para ultrapassar os limites estaduais, dado que os mesmos tinham vida nômade e estavam em constante migração estadual.