Escrito por: Pedro Rubens
Escrevendo o prefácio do livro A odisseia do cinema brasileiro (2011), de Laurent Desbois, o cineasta Walter Salles escreve que “a história do cinema brasileiro exprime, antes de mais nada, o desejo de refletir uma identidade nacional em construção na tela” e utilizo-me dessa frase abrangendo para o contexto de produções no geral, nesse caso em específico para a série Manhãs de Setembro, lançamento nacional do Prime Vídeo.
A série apresenta a história de Cassandra, mulher trans que depois de pouco mais de dez anos descobre que tem um filho. As dificuldades dessa descoberta são iguais a nada, se comparadas com o que a protagonista passa por viver no país onde mais matam pessoas trans.
A dificuldade em encarar essa nova realidade, com uma criança que nunca foi esperada e como consequência precisar conviver também com a mãe vigarista, que tenta de todas as formas se aproveitar de tudo e todos, faz com que Cassandra se veja no olho de um furacão e encontre em Ivaldo, seu amante, a via de escape mesmo que seja um relacionamento complicado e que apresenta inúmeros percalços.
Em cinco preciosos episódios a série conta uma história complexa, repleta de nuances impecáveis de Liniker, atriz que dá vida a Cassandra e apresenta cenas repletas de amor, desejo e plena entrega, carregando no semblante todas as dores, marcas, medos e frustrações da vida, mas também uma alegria e determinação que são a injeção de ânimo para fazer a personagem não parar, mesmo quando a voz na sua cabeça tenta de todas as formas conduzir seus passos.
Dividindo cena com Liniker e presenteando o público com cenas lindas e de pura reflexão, temos grandes nomes do mercado audiovisual brasileiro como Thomas Aquino, Linn da Quebrada, Clodd Dias, Gero Camilo, Paulo Miklos e Karine Teles, essa última ainda não conseguiu se desvencilhar da mesma personagem que sempre interpreta em todos os filmes e/ou novelas que fizer, deixando assim um déficit na atuação da série.
Destaque para Isabela Ordoñez e Gustavo Coelho, as duas crianças da série, que além de formarem uma bela dupla, são extremamente competentes no que fazem e utilizam-se da linguagem infantil para falar ao público adulto sobre respeito, amor e compaixão.
Não bastasse a atuação maestral de Liniker, por trás de tudo isso há um roteiro muito bem idealizado por Josefina Trotta, Alice Marcone e Marcelo Montenegro, que se fundamentam e fincam raízes em uma abordagem pedagógica sobre o contexto em que vivemos e em específico, dando toda ênfase para a realidade vivida pela comunidade LGBTQIA+, abordando com muita sabedoria todos os seus dilemas, dificuldades, traumas e medos.
É difícil imaginar como um roteiro pode se apoiar nesses pilares para fazer algo que não se torne extremamente caricato ou extremamente confuso, e nesse ponto há um equilíbrio, a série sabe muito bem o que quer falar e não perde o rumo da história em nenhum momento. Pelo contrário, tudo está perfeitamente alinhado com um propósito e segue confiante de que chegará com êxito naquilo que lhe foi proposto.
Outro ponto extremamente positivo e digno de toda a exaltação é a trilha sonora impecável, basicamente toda composta por músicas de Vanuza que é a musa inspiradora da protagonista e explorando o incalculável talento de Liniker para cenas memoráveis onde a protagonista interpreta músicas da sua ídola, sendo uma delas o ponto de virada na série.
Manhãs de Setembro tem tudo para se tornar uma das maiores séries nacionais já produzidas, seja pelo elenco, trilha sonora e direção, mas principalmente por aquilo que é e pela mensagem que deseja passar. Que tenhamos tantas outras Manhãs de Setembro para assistir e cantar sobre aquilo que precisa ser cantado, assim como diz Vanusa na canção que dá nome a série:
“Eu quero sair
Eu quero falar
Eu quero ensinar
O vizinho a cantar”
Manhãs de Setembro - Vanusa (1973)
Nota: 9.2